É começo da madrugada na África. No céu algumas estrelas bocejam e todos os moradores da aldeia já dormem. Ela sabe que amanhã pela manhã ocorrerá o seu ritual de purificação. O pai, a mãe, a avó, as tias e os tios, acordarão bem cedo e a levarão pelos braços. Só assim purificada, depois de algum tempo ela será desposada – Dizem os que lhe calam – Terá um marido que pagará um dote à família, o preço de casar com uma “mulher limpa”.

Com a genitália mutilada, ela não trairá aquele senhor de sessenta anos. Não desejará outros homens. Nem sentirá prazer, este pecado original de todas as mulheres dali – Ensinam os que lhe oprimem – Que contamina as famílias e conduz a prostituição.

Pela janela ela vê a madrugada que é grande e feia, fria e escura, mas a sua única possibilidade de fugir. Sua idade? Dez anos! Com pés que mal cabem nos caminhos, sabe que precisa acreditar e parte, com um corpo que mal cabe as idades.

Corre, corre, corre, até entrar na floresta. Descansa um pouco, corre, corre, corre. Adormece, acorda, corre, corre, corre. Engole o silêncio, os animais rondam e farejam o seu medo. Chora as lágrimas do mundo, reza aos deuses. Sobe numa árvore, desce, corre, corre, corre… O sol nasce, e ela renasce. Não sabe onde está, mas se descobre mulher, mais adulta do que partiu, dona do seu destino, do seu prazer, da ousadia de ser feliz. Seu nome é o de muitas meninas da África, que correm pelas dores das que ficaram, pelo grito da violação, no sangue em tantas mãos.

Exausta, ela chega e desmaia. Recebe comida e roupa, lápis e caderno para que a sua escrita germine a esperança e a sua palavra floresça os dias. Agora, todas as noites quando olhar para o céu, sabe que alguma menina lá na sua aldeia estará olhando pela janela a madrugada. A madrugada que é grande e fria, feia e escura, mas que traz a esperança do amanhecer, da manhã, e de ser.

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