Por Zema Ribeiro
Cravo “o fantástico” na manchete para resistir à tentação de escrever de vez “o Gabriel García Márquez da Baixada”, embora saiba da admiração de Elizeu Cardoso pelo colombiano e da influência daquele em seu fazer literário. Mas não é este resenhista quem vai empacotar e rotular o pinheirense e entregá-lo de mão beijada aos leitores.
Elizeu Cardoso é artista multimídia. Ou, antes de artista, ser humano multimídia. Cantor, compositor, violonista, escritor. Mas também professor. Desses que elevam aula a status de arte e viram meme na internet. Por um bom motivo: um aluno que adora as lições do mestre pegou aquela clássica capa do Chico Buarque e no alegre escreveu “com” e no triste escreveu “sem” aula de geografia. Ministrada por Elizeu Cardoso, é claro.
Nascido em 1975 em Pinheiro, a Princesa da Baixada, como é conhecida a cidade, Elizeu Cardoso mudou-se para a capital para estudar. Acabou ficando, mas como adverte o amigo e conterrâneo (credenciais escolhidas pelo próprio) José Jorge Leite Soares na orelha de “Memórias do tempo”: ele saiu de Pinheiro, mas Pinheiro não saiu dele.
Apesar de seu menos de meio século de idade, Elizeu Cardoso é, como os predestinados que se prezam, daqueles que carregam milênios de histórias na cachola, entre as que ele vê, ouve ou inventa. Segui-lo em redes sociais é uma experiência entre o hilariante e a reconexão com o moleque do interior que todos fomos pelo menos uma vez na vida, ou por que moramos lá, ou visitamos em férias ou fins de semana ou já fomos a algum.
“Memórias do tempo”, seu livro mais recente, é esse mosaico: Elizeu Cardoso se vale de lembranças de histórias ouvidas aqui e acolá (convém lembrar que ele continua visitando a terra natal com frequência, excetuando-se a quarentena imposta pela pandemia de coronavírus) e dois livros, de Graça Leite (“Bem-te-vi, bem-te-conto”) e Josias Abreu (“Coisas de antanho”), a quem dedica o seu próprio, cujos personagens revisita.
“Nunca no mundo e no mundo sempre”, diz o bordão de Inácia Coragem, protagonista da novela fantástica, cachaceira inveterada, espécie de louca da aldeia, capaz de plantar borboletas e falar com anjos (ainda que com desconfiança).
A prosa de Elizeu Cardoso nos conduz pela vida pacata de cidade do interior mas não se contenta com o comum. Tudo o que Beto Nicácio desenha na capa, espécie de resumo gráfico talvez da história, talvez da cidade interiorana daquele tempo, talvez ambas, está lá. Mas na Pinheiro de “Memórias do tempo”, entre quermesses, pescarias, talagadas de cana em quitandas, o mineiro Carlos Drummond de Andrade jamais escreveria “eta vida besta, meu Deus!”.
Há dilúvios de nove meses, casal criando sapo cururu feito fosse filho e carroceiro que leva, além de um jumento para puxar o meio de transporte e carga, um urubu feito papagaio de pirata. Uma estrela cadente muda o rumo de uma pesca, fadada ao fracasso até antes de sua aparição. Nada na escrita de Elizeu Cardoso, no entanto, soa história de pescador. A não ser, obviamente, sua capacidade de fisgar o leitor para dentro das histórias (no plural mesmo) que costura.