Abra a porta! Abra a porta! – gritou uma voz lá fora, acordando a viúva Vicentina Pia justamente no sétimo dia do falecimento do marido. Com os olhos pesados, levantou-se da rede, calçou os tamancos de madeira e se perguntou atravessando a casa: Quem poderia ser uma hora destas, quando o vento da madrugada ainda caminha?
Era o marido Militão, ainda com a camisa manchada de sangue por onde a faca havia entrado. A barba estava crescida, dando-lhe um aspecto de abandono, assim como os cabelos caindo sobre as orelhas.
– Entre. Farei um café quente, que o teu corpo está frio – disse ela, estendendo a mão.
– Um momento – pediu o marido se virando de lado. Pôs a mão sobre o corte, franziu a testa, e chamou uma sombra encostada nas árvores ainda escuras:
– Venha, Irineu. Já chegamos.

Ele veio andando com dificuldades. Os passos vacilantes caminhavam pedindo desculpas por pisarem o chão. Pareciam que não queriam chegar a lugar algum. Vicentina teve pena e foi buscá-lo no meio do caminho. Assim entraram em casa. Ela no meio dos dois, com eles feito muletas.
Sentaram-se em silêncio à mesa. Ela pôs três xícaras e foi enchendo de café de quiabo. Como se lembrassem de repente que podiam falar, puxaram assunto:
– Mulher, quero mais açúcar. A morte deixa um gosto amargo na boca, sabia? Não sei nem explicar. E tu Irineu, também vai querer mais? Não se envergonhe por ter me matado, eu também te matei. Briga sem sentido, não foi? Agora estamos aqui lado a lado.
– Quanta ignorância a nossa, Militão – lamentou-se Irineu com os olhos arregalados em direção à cumeeira da casa. – Mas o que tu tinha que dizer que o meu galo de briga era galinha? A briga não havia findado com a vitória do teu? Meu sangue subiu pros olhos quando vi teu riso para as pessoas em volta. Ganhar e perder são coisas da vida, agora menosprezo é coisa de morte.
– Mas Irineu, o riso faz parte da vida.
– E também da morte!
Pegando o açucareiro, Vicentina Pia derramou mais uma colher de açúcar em cada xícara. Depois foi ao quarto pentear o cabelo e trocar o chambre fino que lhe marcava o corpo. Irineu limpou a testa daquele suor frio e perguntou ao vê-la voltar bocejando:

– Vicentina, as pessoas sentem saudade da gente?
Mas Militão quem respondeu, vendo a mulher ensaiando resposta:
– Não responda! Ele tem que se acostumar que não estamos mais nesta vida.
– E o que fazemos tomando café? – questionou Irineu.
– Não foi tu que reclamou da frieza lá fora?
– Eu reclamei da frieza, mas em nenhum momento passou pela minha cabeça vir pra cá incomodar Vicentina que ainda se veste de luto. Por acaso esta casa é minha? Ainda mais uma hora dessas quando chega a melhor parte do sono.
– Tu é muito é mal agradecido. Mais falso que telhado infestado de cupins – zangou-se Militão, jogando um punhado de farinha na boca. – Estava batendo os queixos, e eu com pena te convidei. Mas o mundo é uma moeda, de um lado afeição e do outro ingratidão.
Ouvindo aquela discussão, Vicentina Pia interveio:
– Vocês vão se matar de novo ou uma morte já basta?
Suas palavras ecoaram feito um trovão em noite de tempestade. Os dois, envergonhados, abaixaram a cabeça. Silêncio tamanho que se podia ouvir até as moscas quase invisíveis sobre as bananas penduradas na despensa.
– E a burra, Vicentina, tá chorosa? – recomeçou o marido, para quebrar o silêncio que crescia.
– Ainda agorinha tu me pediu pra gente esquecer a vida. Olha aí, tu querendo saber de burra – vingou-se Irineu, fingindo olhar para a cuia de farinha. – Tanta coisa para saber, e tu me vem com burra?
Vicentina Pia se fez entender apenas com o olhar, e emudeceram novamente aquela conversa comprida.
– A burra está bem, mas mesmo chorosa voltou a comer, Militão. E as pessoas sentem sim saudade de vocês, Irineu. Quem não supera a tristeza é Benedita Lua. Ontem mesmo esteve aqui, falando de ti. A mulher jurou que nunca vai ter outro homem.
Irineu ensaiou um choro, mas não tinha lágrimas. Só apertou os lábios trêmulos, quase sem forças, para dizer:
– Mas tira isso da cabeça dela. Tu vai dizer que sonhou comigo e nele eu mesmo disse que ciúme é besteira e das grandes. Ela pode arrumar um homem para envelhecer junto com ela. Tu não acha que tô certo, Militão?
– Eu lá tenho querer depois de morto, homem? Quem ficou na vida, que viva! Ainda mais que nada pode ser feito. Não eu que nasci para ser visagem por causa de ciúme!
– Nasceu? – questionou Irineu.
Ao que Militão adiantou-se corrigindo:
– Não eu que morri para ser visagem. Vicentina pode amar quem ela quiser – mas interrompendo o pensamento, voltando atrás remoendo um pensamento, – só não gostaria que fosse Ataulfo, matador de porco.
Desconfiada, a esposa fingindo distração com a fumaça que subia da xícara, quis saber:
– E que mal esse pobre te fez?

– Nada, mas ele sempre te olhou diferente. Tu sabe quando desponta uma fruta madura no quintal do vizinho e a gente fica daqui de baixo espiando? Ela lá nas alturas e a gente aqui desejando seus sabores. Pois é a mesma coisa.
Vicentina nem respondeu, diante de tamanho descabimento. Irineu é que balançou a cabeça em desaprovação, voltando a mastigar aquela farinha torrada.
Acabaram de tomar café e agradeceram. Quando atravessaram a porta da cozinha, o céu ainda estava anoitecido. Vicentina Pia, sem sono, pegou a vassoura e começou a varrer o terreiro. Limpou as pegadas dos dois e se apoiou para descansar sob o pé de jambo. Ali viu, debaixo daquela chuva de florzinhas cor-de-rosa que iam cobrindo o chão, o dia florescendo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *