Revirou a água quente da cabaça e aliviou pouco a sede daquele dia abrasador. Passou o braço na testa, enxugando o suor, e só então se dirigiu à mulher, que amarrava a imbira na cintura como mais firmeza, sentindo que a saia rodava na sua magreza.

– Mulher vamos embora, que trabalho não acaba. Amanhã a gente termina.

Ela apenas acenou com a cabeça. Então, deixaram a casa de farinha em direção à moradia, não tão distante dali. Jantaram um peixe cozido, cheio de rodelas de caju, conversaram um pouco na porta, mas a exigência de mais um dia torrando farinha, cobrava sonos mais cedo.

De madrugada a esposa acordou, ainda cheia de sedes. Ao revirar a caneca no pote, se lembrou de olhar se as formigas ainda continuavam atravessando do quintal para a porta da rua, como havia observado na hora do jantar. Até chegara a comentar:

– Estranho, né, marido? Vê como as bichas estão igual rio passando pela porta do quintal.

– Mulher com a fome que eu tô, eu não quero é nem saber de formiga – Respondeu depois de mastigar a farinha que havia feito – A natureza tem suas linguagens, né? O que a gente sabe é quase nada.

Ela vinha voltando para o quarto, se lembrando dessa conversa, quando ouviu um choro distante. Parecia criança, mas ninguém por ali havia parido. Deitou-se ao lado do marido, e apurou os ouvidos. Logo ouviu novamente.

– Tu está ouvindo, marido?
– O que? – Disse com a voz embrulhada em sono.
– Esse choro distante, parece de recém-nascido.
– Não tô ouvindo nada. Mas neste povoado, ninguém estava prenha – Deduziu já com os olhos abertos – Como diacho vai nascer criança? Deve ser algum bicho perdido.
– E ser for uma criança, vamos lá ver?
– Oh, mulher, amanhã o dia é cansativo. Vamos dormir o sagrado sono. Eu nem to ouvindo mesmo. Tu pode estar sofrendo enganações, até andanças de formiga tu deu pra observar.

Ela silenciou, mas não pregou mais os olhos. Será que era mesmo bicho perdido? Não, não, era choro e de criança mesmo. Levantou-se, espiou pela janela, mas o céu ainda estava escuro, longe de desestrelar.

Mal o dia escorregou pela batente da cozinha, ela sacudiu o marido.

– Vamos homem, que o choro continua. A gente sai mais cedo e vê o que é isso.

Tomaram café às pressas, e lá foram pelo caminho. A mulher o guiava, já que só ela ouvia no começo, até que o marido destampou os ouvidos.
– E não é que é choro de criança mesmo, mulher?

Ao avistarem aquilo, condoeram-se de não ter vindo ainda de madrugada. Uma criança chorava, já rouca e quase sem força, no meio de um formigueiro. As formigas cobriam-lhe todo o corpo. Tiram-lhe rápido e a levaram para casa, mas por dias ainda chorou, mordida pelas memórias.

Até que numa noite dormiu e esqueceu-se de tudo. Acordou sorrindo, renascida, com o nome de Piedade. Seus olhos eram tão azuis, que se podia jurar, que deles é o que o céu roubava sua cor.

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Para a nossa bisavó Piedade, que renasceu no mundo assim. Envolta em fantasia e dor.

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