A BICICLETA DE AZAEL
– São Jorge enfrentou um dragão, por que é que eu vou ter medo? – Disse para si mesmo, Azael, girando o botão do rádio em busca de sintonia. Aquele seu amigo estava envelhecendo junto com ele. No começo o rádio falava tudo claro, agora era gemido de desentendimentos, guaguejando notícias. Se começava, perdia os finais, e se dizia o meio emudecia nos começos. Soletrava palavras, e acabava naquele idioma de chiados.
De de tanto viverem juntos, ao voltar da cozinha para a porta da casa, a mulher logo viu o brilho nos olhos do marido teimoso, tentando ouvir o rádio. Colocou as duas xícaras de capim cheiroso sobre o banco de madeira, para esfriar um pouco, e esperou que ele lhe contasse. Observavam a lua clara, ali em frente, até que ele desembuchou:
– Mulher, tô pensando em trocar a cabra numa bicicleta!
– Como assim, marido? Tu não tem mais destreza para andar por aí numa bicicleta. Tua idade te curva diante do tempo, imagina por dentro do vento.
Ele pegou sua xícara, riu das palavras da mulher, e fingiu esquecer, levando a conversa para outros rumos. Apontou-lhe a lua, e relembrou da coragem de São Jorge naquela peleja sem fim com o dragão. “Se o santo anda num cavalo desses, por que eu não posso andar num cavalo de ferro”? – Pensou revirando mais um gole de chá, atento aos olhos da mulher desconfiada.
Mal o dia havia nascido, beijou a esposa e saiu dizendo que ia resolver umas coisas. Antes do meio dia estava de volta. Ao vê-la na porta, boquiaberta e com as mãos na cintura, foi logo se adiantando:
– Não te disse? Pois agora quero ver se não aprendo – E apresentou a bicicleta, salpicada de ferrugem.
– Pensei que estivesse mais nova – Observou a mulher, vendo o guidão com as borrachas comidas, a ausência dos pedais e de alguns raios.
– Para as distâncias não tem idade mulher. Não vê eu? Longe é onde ninguém foi.
Naquela mesma tarde, pediu ao seu compadre lhe ensinasse a domar aquele bicho desequilibrabo.
– É simples, meu cumpade Azael. É só olhar para os caminhos e esquecer do resto. Sinta a direção do vento, que ele lhe sopra, feito barco à vela. – E saiu empurrando, como faria ainda em muitas tardes. Até o dia em que sentiu que o compadre se tornara mais leve e o deixou seguir sozinho. Mas na curva, ao fim da ladeira grande, viu o compadre passara direto e se perder dentro do mato. O encontrou meio tonto, enroscado nos ramagens.
– O senhor esqueceu da curva? – Perguntou o compadre, vendo-lhe recobrar os sentidos.
– Não esqueci não. O olho reconheceu, o corpo é que desobedeceu.
Não havia uma curva que ele não perdesse os rumos. Chegava mesmo a dobrar no sentido contrário, na confusão das direções. Então, acamado pensou, pensou, e jurou à mulher, que assim que se recuperasse, só andaria nos caminhos retos.
– Mulher, tu sabe o que significa o meu nome?
– Não, mas acho que é teimosia ou desajuizado – Disse zangada, limpado o ferimento na testa dele.
– Não é não, é de significância bonita. Quer ver repara. Quer dizer: “Deus viu”
– E como viu. Cada queda que tu levou, com certeza ele viu!
Foi só sentir que as dores das costas e a ferida havia sarado, que o velho Azael voltou as andanças de bicicleta. Gostava daquela sensação, como havia dito o seu compadre, de barco à vela em cumplicidades de vento.
Montado no seu cavalo de ferro, enfrentava todas as distâncias, e quando chegava numa curva, descia. Virava a bicicleta na direção certa, e saía pedalando, sem desejo algum de chegar.