A ÚLTIMA VIUVEZ
Naomi até se assustou, ao ver a avó saindo do quarto, àquela hora tão dentro da madrugada. Pensou que ela estivesse dormindo, descansando da longa viagem que fizera até ali, para o velório. Mesmo com os seus 101 anos, jamais perdera um enterro, dizia que “mesmo quem não viu os nascimentos, deve se apressar para ver os partimentos”.
– Vó, se sente aqui – Mas ela cega, demorara um pouco apurando os sentidos para que pudesse sentir os presentes, o cheiro das velas, as flores que começavam a murchar e até o cachorro, cochilando sob o caixão.
A notícia da morte de Leonor, marido de Naomi, não causou tanta tristeza na ilha, aumentavam sim, os estranhamentos. Tão bonita, com aquela morenice de causar febre e delírio nos pescadores e aquela sina de ficar viúva.
– Quem sabe não nasceu assim, condenada a se casar com a solidão? – Cochichou Maria dos Anjos, escamando peixe, assim que soube da notícia no fim da tarde.
– E não é, minha cumade? Nem todo mulher nasceu para a quentura dos abraços. Deus pôs nela a morenice e a beleza, e o diabo por inveja, lhe tossiu a tristeza.
Leonor, o terceiro marido morto. Pescador dos que riem do mar e assobiam com as tempestades. Inventara de tirar juçara, mas ao cortar o cacho sentiu que os pesos eram muitos. Despediu-se ainda na queda, invejou os passarinhos, e estatelou-se no chão. Ficara de olhos abertos até antes do enterro, por mais que lhe forçassem com as mãos às pálpebras. Nunca se cansara de ver o mundo. Depois os fechou sozinho, pois com a tampa sobre a cara, já não fazia sentido.
Matias, o segundo marido morto. Tocador de tambor, vivia de povoado em povoado, com dois amigos que formavam a parelha. Vinham os três conversando, quando o seu cavalo desembestou. Por mais que esporassem os seus cavalos, viram que o amigo já havia sumido há muito na curva, perto da árvore grande.
– Coisa sem explicação! – Condoeu-se Vicentino Mão de Pau, ao chegar no povoado com o corpo do amigo.
– Sabemos que tem explicação, apesar da dor – Corrigiu Bernardo Urro, diante dos curiosos – Cavalo manso como aquele dele, só visagem para lhe confundir as narinas e as direções. O bicho correu tanto que se jogou sobre a árvore grande, em relinchos de dar medo. Ainda sentimos Matias suspirando, mas em vez de se lamentar da dor do baque, cantava baixinho toadas, até que desafinou, feito um tambor, e se calou.
Osmiro, o primeiro marido morto. Jantou o peixe que mais gostava e brincou cheio de manha ao empurrar a primeira colherada cheia de caldo e farinha, na boca:
– Naomi, tu faz é feitiço, né? Tu sabe que peixe para mim é com caju, e tu me faz um cozido desses para o jantar?
Ela sorriu, admirando a beleza daqueles olhos de lamparina que vigia a noite. Nessa mesma madrugada, ela o abraçou e estranhou que ele estivesse sem cheiro. O chamou duas vezes, mas ele não respondeu. Ainda tentou responder, mas já não podia – Disseram os mais velhos que viram a tortura da sua boca – Morrera dormindo e o seu cheiro só voltou no amanhecer, dentro de uma brisa fria que se perdera, e desistiu de seguir para o mar.
– Venha vó se sente – Insistiu Naomi, ao ver a avó ainda parada. Em seguida, bebeu mais um pouco de café e deixou sobre a mesa.
Só então, ela se aproximou devagarzinho e passando a mão nos cabelos da neta, mais uma vez viúva, estranhou:
– Naomi, por que não ouvi tua xícara deitando no pires?
– Eu não uso, pires, vó. Nunca usei.
– Pois, é isso que está traçando a tua sina, minha filha. É que te falta idade para saber. Mulher que toma café em xícara sem pires, chama a morte para o marido. É como se faltasse a claridade do dia, o choro do nascimento e a quentura do amor. Como eu já não tenho idade para atravessar a madrugada, nunca havia presenciado. Os que são dois, não podem ser um, minha flor. Mande buscar amanhã mesmo na cidade, que para o amor não há idade. A vida é comprida demais para se atravessar sozinha – Finalizou, indo em direção ao quarto, onde a cortina fina da porta varria o chão e as pegadas dos que ainda podiam caminhar.