A BEIRA DO RIO
E vendo se derramando tantos verdes e tantas águas, me pus a pensar. Aqui, com os pés dentro do rio, fico só admirando o sol inventando cores, na derradeira hora do dia. Já, já vai embora, mas amanhã volta. Dança estranha essa do dia com a noite, só se encontram na porta. E não é que gostam desse resfolego? Pois desde que o mundo é mundo que é assim, um entrando no outro, no desquaramento das cores.
As canoas ali me espiando, pensam que não sei do que cochicham. E não adianta se esconderem debaixo do pé de titarra. Quem é da beirada sabe o que diz a espiada! Nigrinhas, feito gente, e nem respeito tem. Mas deixa elas, que quem cochicha o rabo espicha! Acham que eu nasci ontem, pois o que mais vi neste rio foi canoa e pescador na solidão das esperas, antes da alegria das farturas.
Passaria a vida inteira aqui de braços abertos, sentido o galope do vento e remoendo as memórias. E não é que o vento começou a esfriar? Quando esfria assim, sei que é o bocejo do Mato Azul, ser arrumando para dormir.
Lá estão as primeiras estrelas chegando, parecem vaga-lumes atravessando os buracos do céu. Na minha idade conto mais as histórias que vi, do que as que ouvi. Lembro de cada uma, feito pedaços de pano, que se vão juntando numa cortina. Foi numa noite fria assim, que João Pampão viu um ET, ali em frente. Nunca ouviu falar? Pois então, eu lhe conto já.
Não fazia muito tempo que João havia chegado para pescaria. Mexia no cofo, atrás da cuia de isca, quando viu um vulto. Pensou estar enganado, mas da segunda vez viu com clareza aquele homenzinho correndo na beirada. Era pequeno como uma criança e tinha uns pés para trás, feito currupira. Pescador experiente, João foi remando bem devagar, se afastando dali. E mesmo nas distâncias, ainda podia ver o homenzinho correndo de um lado para o outro em velocidade de gato do mato.
Aqui quando é noite, só existem duas certezas: As curacangas vão chegar e as memórias virão me visitar. Lembro de muitos pescadores…
João Neves? Pescava tarira no mergulho. Nenhum pescador era como ele. Debaixo d´água ele esquecia até que precisava subir para respirar, e ficava lá, feito um peixe, quase morando.
Zé Beicinho em pé nas tábuas da canoa, se desequilibrou e viu os seus óculos mergulhando nas águas. Voltou para casa tateando os vazios. Depois de quase um ano, fisgou uma traíra. Eita, espanto! Quando viu na cara da bicha os seus óculos de lentes esverdeadas.
Melchíades Avião, numa noite escura estava impaciente por sequer conseguir botar as iscas no anzol, quando viu uma estrela se despregar do céu e vir em sua direção. Caiu com todas as claridades e ficou a noite toda lhe fazendo companhia. A levou para casa, e contou um mês até que o seu brilho se apagasse.
Até hoje ouço o choro de Jovita e Raimundo Cujuba que viviam num casebre. Tão bonito e bem cuidado era o sapo cururu, que criaram como um filho. O encontraram estendido sem vida no meio da casa. Foram embora depois disso, e Inácia Coragem por mais que eu perguntasse nunca respondeu se era a culpada.
Eu nasci e me criei aqui. Nunca foi em nenhum outro lugar. O que sei são das coisas desta gente. Vi cada faveira desaparecer do outro lado, e chorei os seus silêncios. Conheço os peixes sem vê-los, basta que encostem no meu pé. Os ventos também, quando acariciam os meus braços, sei das distâncias que vem. Quando eu morrer, vou morar aí dentro do rio. Mas não tenho medo, sei que desabarei um dia. Pois é destino de todas as árvores do mundo, como eu.