Foi o som daquele motor gaguejando no céu, que chamou a atenção da cidade. O dia há pouco havia nascido, por isso o azul ainda era tímido, borrando um resto de madrugada. Na beira do campo as canoas cheias de peixes eram disputadas pela gente em busca do almoço, e cada prato pesado abria um sorriso na cara do comprador. 

– Vumbora, gente, que o bagre tá gordinho pra daná! – Gritava um pescador experiente, enquanto comia uma manga. Doçura, depois da madruga inteira pescando na escuridão dos campos, matando praga e vendo as curacangas de um lado para o outro.

– E as pampa, traíra, jeju e acará? É só começar a comer que não quer mais se levantá! – Dizia o outro, tirando com uma cuia um resto de água da canoa, sem perceber aquela cobra d’água entre os mururús. Ela espiava o movimento com os mesmos olhos que se assustariam, horas depois ao ver alguém entrando na água, dizendo: “E eu lá tenho medo de cobra?” aos que espiavam assustados da beira.

Próximo ao cemitério, Zé Macaco se levantara bem cedo. Depois de tomar um café preto e jogar um pouco de farinha na boca, se despediu de Dona Catarina que já varria a casa:
– Vou ali, mulher, comprar comida. E se tu fizer aquele pregado do jeito que só tu saber fazer, te trago um presente.

Quando ele chegou à beira do campo, próximo ao aeroporto, ninguém mais prestava atenção aos cofos de peixes, mas no caminho de fumaça deixado no céu pelo avião que vinha perdendo altura, até cair no alagado.

Zé Macaco deixou as sandálias na beira e avançou em direção a aeronave, agora identificada: Era a que fazia pagamentos na região. Com passos ligeiros, ele vinha seguido por outras pessoas, que logo recuaram ao ver a cobra d’água, agora à mostra deslizando brilhante. Ele a viu, mas não teve medo e esbravejou para os que haviam recuado “E eu lá tenho medo de cobra”?

O avião continuava fumaçando e ele subiu na asa, na certeza de socorrer alguém. A cobra acabara de mergulhar, desaparecendo, quando a explosão aconteceu e ele sentiu que era arremessado distante até cair na água. O corpo queimado, zonzo, o que não o impediu de ver ali ao seu lado uma flor de mururú. Era esse o presente que prometera a Catarina se fizesse o pregado do arroz.

Mesmo ferido, caminhou até o Hospital Nossa Senhora das Mercês, e o internaram naquela manhã do dia 11 de abril de 1980, com queimaduras graves por todo o corpo. No dia 20 de abril, após 9 dias internado, ouviu uma voz distante em seu ouvido e sentiu que alguém lhe pegava as mãos.
– Vumbora Zé Macaco, os tambores já estão “quentando”. Lá, as flores das saias das coreiras vão caindo pelo chão e brotando longos jardins, e todo mundo já está te esperando, pois tu já animou demais as rodas de tambor aqui na Terra. Tu vai ou não?

Ele sorriu, balançou a cabeça e disse que sim. São Benedito também sorriu, amigos que eram, e sabia que ele não resistiria a uma roda de tambor-de-crioula. Ao pegar em suas mãos para seguir viagem, sentiu os calos de quem atravessara noites inteiras em cantorias, esmurrando o couro para que as coreiras dançassem e a alegria esquentasse o coração e alma das pessoas.

– Zé, tu não viu aquela cobra que mandei para te alertar?
Deveria não ter te aproximado – Perguntou São Benedito na estrada de onde já se ouvia a parelha afinada, e o coro crescendo.
– Mas São Benedito, e as pessoas precisando de ajuda no avião? Vamos é apressar o passo, que tambor já começou – Disse ansioso por chegar.

Dona Catarina ao acabar de varrer a casa, se sentou para catar o arroz, e nunca entendeu bem o que fazia aquela flor de mururu ali em cima da mesa. Veio trazida pelo vento, subindo ladeiras e atravessando cercas e quintais, então a pegou e a pôs nos cabelos.
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Para Dona Catarina (In memoriam) e seus filhos, amigos de tantos encontros. Doegnes Soares, Gilmar, Fátima, Simone, Milton César (Bonsó), (José Ribamar) Mixuruca e Cinderela.

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